quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Culpa comum

Terminava de enxugar a vasta cabeleira quando deparou-se com o espelho pendurado. Um espelho não tão grande, tinha repúdio aquele espelho pequeno que lembrava-lhe os dos botecos do centro da cidade em que comia durante sua juventude, via-se ali refletida totalmente nua, não só de roupas. Reparou que já começava da indícios de que o tempo estava a passar. Preocupou-se, nada de anormal pois em algum momento da vida já havia se dado conta de sua insignificância. Era de altura mediana, quadris largos e cabelos crespos cuidadosamente alisados. Era comum, não chamava a atenção nem dos homens nem de ninguém. Incomodou-se com isso por anos, sobretudo na adolescência quando notava todos os garotos olhando para a Ritinha, sua amiga de sala e durante muito tempo martirizou-se pensando o que a garota de cabelos lisos e sem bunda tinha que ela não tinha. No meio da recordação em torno da figura de Ritinha, inclinou a cabeça para baixo e percebeu que deixara no chão algo. Lembrou-se o porque do banho: havia tentado apagar de si os últimos vestígios do crime que a pouco acabara de cometer. Marisa, assim se chamava e detestava o nome por ser comum e não ter uma sonoridade agradável no diminutivo como Ritinha, jamais premeditara tal ato. Se deixou ser levada pelo impulso. Sim, ela a comum Marisa também tinha impulsos. Na verdade a tempos que vinha se deixando ser tomada por seus impulsos. Eles  lhe confortavam de um certo modo, mas tambpem lhe cobravam um certo preço por tal feito. Voltou a olhar novamente o chão e novamente achou-se a idiota de sempre. Como deixará aquele vestígio banal escapar-lhe? o que diria aos filhos ou ao marido, que por sinal a amava porém de forma comum como todos os maridos amam suas esposas, se dessem de cara com aquilo no chão? Como justificar tal ato sendo Marisa o ser mais comum de todos e portanto incapaz de uma genialidade como aquela? Parou por uns segundos e começou a refletir como retirar aquilo dali. Já havia limpado o resto da casa às pressas antes que chegasse a hora de todos estarem em casa. Até mesmo lavou-se na ingênua crença que assim  nem mesmo o ar que havia presenciado seu crime continuasse a lhe rondar. Começou a remover a última das evidências quando foi cercada pelas demais pistas que havia já apagado. Em um redemoinho ouvia gritos, gemidos, conselhos, dúvidas e vontades. Se via independente, desejada, se via Ritinha. Até mesmo os cabelos lhe pareciam lisos naturais. No meio da confusão entre produtos de limpeza e de higiene pessoal, sentiu a cortina do boxer cair, olhou para a pia e viu que a torneira deixava correr água vermelha. O espelho lhe punia com sua imagem pobre e comum. Orgulhava-se de ter se tornado Ritinha e ter se deixado guiar por impulsos. Sentia-se culpada porque como os demais seres comuns sabia que a conta a ser paga por sua rebeldia chegaria logo. Sentia-se Marisa, ajoelhada no ladrilho do banheiro com uma escova e sabão nas mãos tentanto livrar-se de algo. Sentias-se Marisa, a mesma Marisa que sempre tentou eliminar-se dos vestígios, até mesmo dos pouco que lhe conferiam  uma certa autenticidade diante dos demais seres humanos.

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