domingo, 23 de janeiro de 2011

Deusa querida e distante - Carta de Caio Fernando Abreu A Adriana Calcanhoto



 Acordei esse domingo fuçando uma biblioteca digital e me deparei com o Caio 3D - O essencial da década de 1990. Entre algumas crônicas e crônicas há uma série de cartas enviadas por Abreu a diferentes pessoas. Um dos seus destinatários foi Adriana Calcanhoto.


A ADRIANA CALCANHOTTO
Saint‐Nazaire, 16.12.92

Deusa querida e distante,

cadernos são iguais em tout le monde. Ele faz uma confusão entre aquela impossível não pensar em você bebendo literalmente litros de água Perrier todo o dia — o aquecimento seca horrores a pele! —, mas não só por isso. Também procuro as cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo (vi uma autêntica na Fnac, em Paris!), que aqui, neste porto de mar na Bretagne, entre Nantes e Brest, a cidade de Querelle, são bastante raras. São mais cores de Agnés Varda, cores de Gustave Klimt. Tua fita1 - da qual não me separo há meses — faz sucesso por aqui. Mal posso ouvi-la. Alain Keruzoré, meu tradutor, passou para Bernard Soubourou, que sabe tudo sobre — imagina — Tânia Alves, que passou para Marie Pierre. Hoje saio na batalha, não quero ficar sem ela. Te mando dois recortes, um deles fala em você. Mas ai, os -modernos-e-seus segundos- Penélope que você musicou e um conto que Claire Cayron traduziu. Bom, não importa. Anyway, você está presente no texto — uma pequena novela — que escrevo no momento para deixar aqui, será publicada pela Arcane 17.
Fico até 31.12 neste apartamento enorme, debruçado no porto de mar, com uma vista de 360 graus e uma paisagem que, estranhamente, lembra Porto Alegre, Manhattan, Florianópolis e a ponte Rio-Niterói (com Saint-Brévin les Pins do outro lado da baía). Depois vou a Amsterdam, Kóln e Frankfurt, para leituras, tradutores, agentes. Acho que volto em fevereiro — mas não sei ao certo, houve um problema com meu ap. em SP na minha ausência e, anyway, tenho que estar na Alemanha outra vez em junho. Tenho pensado que só agora compreendo o sentido exato da expressão "minha pátria é minha língua". Passei o domingo, ontem, comendo ostras, bebendo vinho branco e ouvindo Jane Birkin cantando as canções de Serge Gainsbourg. Você ia adorar Norma Jean Baker. Vou levar a fita. Fiz amizade forte com a filha de Christian, o diretor da Maison — chama-se Marina, tem 9 anos, é Virgo ase. Capricórnio e tem absolutamente tudo de Van Gogh. É quem tem me dado as melhores aulas de francês. Andei muito cadela no Brasil. Milhares de problemas, nada grave. Seu disco — deixei um recado na sua gravadora — me ajudou muito. Tem ajudado, é sincero & comovido o que te digo. Sábado tem show de Marina em Paris. Pensei em ir, mas fiii recrutado para participar de uns debates com os escritores do Báltico — Lituânia, Estônia, Letônia, imagina — seria feio faltar. Outro dia acordei com vontade de ouvir Elis e encontrei um cassete no Centro — tem Folhas secas.


Te mando uma folha de outono. E todo carinho, e toda a energia para você continuar seu trabalho.


Je t'embrasse, love
love
love
Caio F.

PS — Às 13h vejo Isaura na TV: Lucélia falando em francês é hilário! Logo depois tem Dona Beija — mas aí é demais para minha beleza.
PS 2 — Torci tanto por Benedita da Silva. Sábado, no Liberation saiu um perfil dela chamando-a de "La madona des favelas". Desta distância, lanço meu olhar sobre o Brasil e entendo ainda menos...
PS 3 — Estou cantando Anne Dusquenois, que produz Marina, para trazer você.
PS 4 — Brigitte Bardot tentou o suicídio com barbitúricos, ontem!
PS 5 — Comentário na TV sobre Lady Di: "Bem, se os ingleses não querem saber dela, nós, franceses, podemos dar um jeito..."



Publicada em ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 90. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

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