quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

À contra-gotas

Paul Klee - Senecio


Descarregava sua tristeza a contra-gotas de modo bem devagar para poder ouvir o som provocado por cada uma ao se chocarem com o fundo do copo. Pensava se as beberia. Lembrara que quando criança gostava de observar a mãe pinga cautelosamente o remédio gota a gota, sempre se detendo ao número exato de pingos que deveria equivaler ao seu peso. Se deu conta, no meio de lembrança, que estava gorda. A cima do peso seria a melhor forma de encarar. Na verdade o que mais lhe causava a sensação de obesidade mórbida era o turbilhão de sentimentos desvairados que trazia dentro de si. A ansiedade era  a que mais lhe inchava o corpo. Não sabia se era um efeito colateral por se sentir deslocada num mundo onde as informações, os sentimentos e os relacionamentos eram bem mais rápidos que a velocidade da luz ou simplismente porque se empanturruva a cada vez que se sentia ansiosa. Lembrou-se que não se lembrava  de  como toda esta confusa melancolica se tinha iniciado. Ela, sentada na mesa da cozinha às 4:47 da manhã olhando para apática farda cinza, calculando mentalmente como seu orçamento seria afetado pelo aumento da tarifa do ônibus. E em algum momento defrontada com o copo de café, que já esfriara, foi jogada no epicentro do seus esquecimentos, e deparada com um possível e passível motivo: pingar a contra-gotas deveria ser menos sofrível do que se derramar por inteiro. E seria assim que continuaria a esvaziar toda sua tristeza porque esta era o único tópico que poderia lhe distinguir como humana em catalogação de seres vivos. Não esvaziaira de vez a vida, por que esta já estava vazia a muito tempo. Esvaziada bruscamente e sutilmente escondida por debaixo da farda cinza. Último gole de café frio. Angústias e frustações somadas a gastrite. Hora de trabalhar. Mais 24, 36... enfim... mais milhares de horas vazias.

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